14 maio 2007

FERA FERIDA

FERA FERIDA

Pensou pela décima vez no assunto:
Ele disse que não é infeliz.
Meu Deus! Ele falou! Ele falou algo sobre si mesmo, algo diferente de crítica, ironia ou sarcasmo.
Bem, na verdade, tinha que admitir, foi sarcástico e irônico o tempo todo. Até quando disse não ser infeliz.
-Não sou infeliz.
Ora. Não ser infeliz significava ser feliz?
Essas foram as palavras. Não sou infeliz. E elas estavam lá, martelando sua cabeça.
Não sou infeliz, não sou infeliz, não sou infeliz.
Mas não é isso que ele mostra no dia a dia. Conseguira fazer com que falasse, mas será que valera a pena? Agora estava lá, dormindo feito um bebê gordo, e ela ali, pensando nas poucas palavras ditas no meio de um jantar longo, de um casamento indigesto.
Mas se ele dissesse: “Sou feliz" certamente ela não acreditaria. Definitivamente, ele não tinha o menor jeito de pessoa feliz. Que pena, que pena.
Essa era ela - fazia a festa, soltava o rojão e saia correndo atrás da vareta. Ela mesma perguntava, ela mesma respondia.
Perguntava de novo, e se não respondiam, deduzia. Quase sempre erradamente. Nem todos podem deduzir. Só os muito inteligentes, os super dotados, fazem deduções coerentes, e mesmo assim, passíveis de erros.
E logo ela, uma mulher mediana, deduzindo? Mas como fazer com uma pessoa que não fala, a não ser deduzir, tentar entender, comportar-se da maneira mais adequada? Reagir contra ou a favor do que? Da imaginação?
Embora parecesse extrovertida, falante, de bem com a vida, ela queria mesmo era lhe dizer:
- Pois eu não sou feliz. Eu não estou feliz!
Está me entendendo? Não sou!
Mataria a cobra e mostraria o pau. Diria porque não era feliz. O que lhe faltava , o que queria, o que pensava, o que sentia. Diria sem esquecer de contar o que tinha, o que a alegrava e o lhe fazia bem, pois nada é mais desagradável do que ter só críticas a fazer. E isso não existe. Ninguém é de todo mau. Ninguém é absolutamente bom. Mas para isso há o companheirismo, a conversa, o olho no olho. Para isso fomos dotados de inteligência, sentimentos, vida, argumentos, sonhos, palavras, gestos, senso e, às vezes, sabedoria, pra tirar o time de campo.
Não somos ETs, não adivinhamos pensamentos. Quer dizer... não as pessoas comuns.
Ela adivinhava. Ou acreditava adivinhar. E fazia tudo da maneira que pensava ser a certa para fazê-lo feliz. Ou menos infeliz.
E ele ainda vinha dizer que não é infeliz, com cara de "sinhá mariquinha, cadê o frade"?
Ora, ora, ora... essa era a maior crise da vida deles. Ela estava infeliz.
E ele ainda repetia:
-Não vou mudar!
Pois ela gostaria de ter coragem de responder:
-Nosso caso não tem solução. Sou fera ferida, no corpo, na alma e no coração


Mariazinha Cremasco
outubro de 2004

2 Comments:

At 14/5/07 11:39, Blogger Vera Vilela said...

É o tempo passa, a caravana passa, a uva passa.
Mas tem coisas que sempre são tão atuais.

 
At 16/5/07 15:54, Blogger Marcia said...

Já vi esse filme, já conheço os personagens, mas sempre me surpreendo com a sua capacidade de relatar, de resumir e de enfrentar!
bjs

 

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